Arquivo X | depois de 20 anos, a verdade ainda está lá fora
14/09/2016Considerada um fenômeno, a série Arquivo X completou no dia 10 de setembro 23 anos de produção.
Criada por Chris Carter, a série mesclou diversos gêneros e elementos comumente vistos em uma produção televisiva, criando um novo formato (por assim dizer) que ainda é reutilizado. Por isso, para muitos, ela representa o início da produção seriada de ficção e fantasia tal como a conhecemos hoje. Para outros, ela representa mais um marco de transição da constante evolução televisiva.
Arquivo X estreou em 1993, período em que os EUA vivia as consequências da invasão do Kuwait, por parte de Saddam Hussein, bem como da queda do muro de Berlim, que levou à unificação da Alemanha e ao fim da ameaça comunista.
Exibida na última década do Século XX, a série explorou o interesse do público pelas teorias da conspiração que foram se acumulando ao longo dos anos com o fim da 2ª Guerra Mundial, na década de 1940. O macartismo, a guerra fria, o caso Roswell, o assassinato de John F. Kennedy, a Guerra do Vietnã, Watergate, o caso Irã-Contras e tantas outras situações que geraram paranóia e construíram a cultura da conspiração passaram a fazer parte do universo de Arquivo X, mesmo quando não eram mencionados. Para entender o significado da série, bastava compreender e aceitar esse cenário.
Além de mergulhar neste ambiente, Arquivo X também se beneficiou de três mudanças importantes no cenário televisivo: o surgimento do canal Fox, o afrouxamento das regras do FCC, e o sucesso de Twin Peaks, série de David Lynch que apresentava situações bizarras dentro de um ambiente aparentemente normal.
Na virada da década de 1980 para 1990, o FCC, órgão que regulamenta a televisão americana, passou a permitir que a abordagem de temas mais pesados pudessem utilizar cenas com maior detalhe visual, o que beneficiou as séries policiais com os crimes que investigavam, os dramas médicos com suas cirurgias e doenças, e os dramas que faziam uso de cenas de sexo e violência em geral. A exploração desses elementos por parte dos canais da rede aberta americana chegou ao ponto do Congresso se vir forçado a criar em 1997 um sistema de classificação da programação televisiva, que varia entre recomendado para crianças de diferentes idades, e para adultos.
A Fox iniciou suas operações em 1986 com a proposta de ser um canal mais ousado, oferecendo produções que ultrapassariam os limites daquilo que vinha sendo explorado até então pelas séries de TV. Com esse objetivo em mente, a Fox aprovou a produção de séries como Os Simpsons, Um Amor de Família, Anjos da Lei e o reality show Cops (que exerceria forte influência na estética e narrativa dos seriados).
Mas, até o início da década de 1990, a Fox ainda não era considerada uma forte concorrente para as grandes redes de TV, ABC, CBS e NBC. O canal conseguia conquistar o respeito da crítica e causar burburinho na mídia, mas não cobria o território americano. Mal comparando, a Fox era como o CW hoje em dia, mas sem a ajuda da Internet.
Em 1993, a Fox deu o primeiro passo para se tornar uma rede de TV de grande porte. Ela conseguiu ‘roubar’ da CBS o contrato que lhe garantia a exibição dos jogos da National Football League – NFL. Com isso, a Fox ampliou o número de retransmissoras por todo o país, permitindo que ela chegasse em um número maior de domicílios.
Para manter a audiência que estava chegando, a Fox correu atrás de um número maior de séries que retratassem o interesse do grande público, em especial os jovens. Assim surgiu Barrados no Baile (Beverly Hills, 90210), drama teen, que mais tarde gerou a spinoff Melrose Place; o drama familiar O Quinteto/Party of Five e Arquivo X, um drama policial com elementos de terror e situações sobrenaturais.
Na década de 1980, a produção de séries de ficção científica estava quase que restrita às histórias de super-heróis e viagens espaciais. Produções como A Supermáquina, Águia de Fogo, Moto Laser ou Trovão Azul, por exemplo, traziam histórias policiais e de espionagem com elementos de ficção, que no caso eram representados por equipamentos sofisticados (carros, helicópteros ou motos) capazes de realizar proezas quase que milagrosas. Também foi neste período que a TV viu surgir produções como Contratempos/Quantum Leap, V – os Alienígenas no Planeta Terra, Histórias Maravilhosas, Missão Alien e o remake de Além da Imaginação.
Pensando em oferecer algo que pudesse ir além dos dramas sociais explorados por essas últimas, Carter criou uma série situada no tempo presente e na vida real, com elementos que fogem à normalidade, em um ambiente sombrio, no qual o herói nem sempre vence. São monstros, alienígenas e criaturas diversas convivendo no mesmo ambiente que o tráfico de drogas, assaltos a bancos e sequestros.
Para tanto, Carter mesclou diversos gêneros. Entre eles, ficção científica, terror, fantasia, policial, espionagem e paródias. Dentre esses gêneros, ele explorou temas como conspirações governamentais, invasão alienígena, anomalias genéticas, experiências científicas, paranóia, paranormalidade, vida após a morte, entre outros.
Inspirada em produções como Além da Imaginação, O Prisioneiro, Os Vingadores, Os Invasores, Kolchack – Demônios da Noite, Prime Suspect e Twin Peaks, entre outras, a série Arquivo X também se apoiou em filmes como O Silêncio dos Inocentes para criar seu universo e sua estética.
Para narrar essa trama, Carter uniu dois formatos: aquele que apresenta um monstro por semana em histórias fechadas, e o que apresenta um arco dramático ao longo de toda série. Arquivo X também fez uso da fórmula do ‘casal que forma uma dupla de policiais’ (algo muito popular na época).
A história tinha dois focos básicos. O primeiro apresentava a dupla Mulder e Scully agindo como a salvação daqueles que são vítimas de alguma anomalia ou situação bizarra. O segundo foco apresenta a dupla como vítima do FBI e da conspiração governamental, que tenta manter em segredo a existência de alienígenas.
Na história, Fox Mulder (David Duchovny) e Dana Scully (Gillian Anderson) trabalham para um departamento do FBI que investiga casos considerados estranhos. Tratado como esquisito, Mulder não é levado à sério por seus colegas. Seu interesse por este tipo de caso começou quando, adolescente, testemunhou o sequestro de sua irmã Samantha, que teria sido levada por alienígenas. Mulder e Scully representam a fé que temos em algo que vai além da razão, e a descrença que temos em acreditar no impossível, mesmo quando nos deparamos com ele.
Na concepção original, a série retrataria as investigações de Mulder sobre fenômenos paranormais e bizarros, nos mesmos moldes de Kolchak – Demônios da Noite, que acompanha os trabalhos de um jornalista nesta área. Sabendo que a trama se desgastaria muito rápido, tal como ocorreu com a série da década de 1970, Carter incluiu em seu projeto a história de Samantha, que surgiu quando ele soube por um amigo que cerca de 3% da população americana acreditava ter sido abduzida por alienígenas. Também incluindo Scully na trama, para fazer contraponto com Mulder, Carter apresentou o projeto para a Fox.
Temendo que a série pudesse se transformar em um programa piegas ou limitado, a Fox recusou o projeto. Carter insistiu e acabou conseguindo a encomenda de um episódio piloto para avaliação.
A produção da série foi aprovada com o objetivo de substituir o reality show Sightings, que apresentava casos relacionados a UFOs. Apesar da boa audiência, o programa não seduzia os anunciantes, o que levou ao seu cancelamento.
Acreditando que a série não duraria muito tempo, Duchovny aceitou interpretar Mulder. Já a contratação de Anderson foi uma luta travada por Carter com a Fox. Para atrair o interesse da audiência masculina, o canal queria alguém que se parecesse mais com Pamela Anderson, atriz de Baywatch, que fazia muito sucesso na época. Por outro lado, Gillian também não estava muito entusiasmada com a ideia de trabalhar na TV. Ela preferia fazer cinema mas, sem ofertas nesta área e precisando de dinheiro, ela aceitou fazer Arquivo X.
A série estreou no dia 10 de setembro de 1993 registrando a média de 12 milhões de telespectadores ao vivo, e 7.9/15 de rating/share, ficando em 57º lugar na audiência geral.
Neste primeiro momento, Arquivo X não recebeu apoio da Fox, que ainda não compreendia a série em sua totalidade. O canal estava mais entusiasmado com Brisco Jr., um faroeste que misturava elementos de ficção científica e fantasia (tal qual James West).
A série só conseguiu se estabelecer na audiência durante a terceira temporada, que se tornou uma das maiores audiências entre o público alvo (18-49 anos). Isto porque, neste período, a Fox já tinha conseguido ampliar seu sinal com a aquisição de novas retransmissoras, chegando a um número maior de residências. Com isso, durante a quarta temporada, Arquivo X saiu das noites de sexta-feira, migrando para a grade de domingo.
Duchovny deixou o elenco regular da série ao final da sétima temporada, sendo substituído por John Doggett (Robert Patrick). Na história, Mulder é abduzido por alienígenas. Nas duas últimas temporadas, a série ainda contou com a presença de Monica Reyes (Annabeth Gish), agente do FBI que forma dupla com Doggett depois que Dana deixa o departamento.
Durante sua produção, a série gerou duas spinoffs, The Lone Gunman (2001) e Millennium (1996-1999). A primeira acompanhava as aventuras de um trio de hackers que costumava ajudar Mulder em suas investigações. A produção teve apenas uma temporada e treze episódios exibidos. A segunda apresentava a vida de Frank Black, um ex-agente do FBI capaz de penetrar na mente dos criminosos. A produção teve três temporadas e 67 episódios exibidos.
Durante a construção de personagens, Carter sofreu forte pressão do canal Fox para transformar Mulder e Scully em um casal aos moldes de Maddie Hayes e David Addison, de A Gata e o Rato/Moonlighting. Esta foi uma produção que se transformou em um marco da TV americana na década de 1980, tornando-se referência para as séries estreladas por um casal de detetives. Sendo uma fórmula testada e aprovada pelo público, a dupla Maddie e David passou a ser reproduzida ao longo dos anos.
Carter foi terminantemente contra. Ele acreditava que o envolvimento emocional de Mulder e Scully poderia comprometer a seriedade do trabalho que realizavam. Seguindo o caminho oposto ao que a Fox queria, Carter também ofereceu um casal oposto às personalidades de Maddie e David. Mulder e Scully não discutiam, nem competiam entre eles para descobrir quem estava certo. Ao contrário, eles se completavam, respeitando e levando em consideração a opinião do outro.
Mesmo assim, ao divulgar a série, a Fox informava aos jornalistas que existia sim uma tensão sexual entre os dois personagens, a qual seria trabalhada ao longo dos episódios. Carter chegou a levar essa ideia na brincadeira, seja nas fotos promocionais da série com os protagonistas, seja em situações ao longo dos episódios. O produtor cederia no final da série, dando ao público a certeza de que Mulder e Scully formavam, de fato, um casal.
Embora Carter tenha dito várias vezes que sua principal referência para a série tenha sido Kolchack – Demônios da Noite, é visível que a construção do personagem Fox Mulder veio de outra produção.
No final da década de 1960, a TV americana estreou uma de suas primeiras séries sobre conspiração alienígena. Os Invasores trazia o arquiteto David Vincent (Roy Thinnes, que fez participações em Arquivo X) testemunhando por acidente a chegada de uma nave alienígena na Terra. Tentando convencer as autoridades, Vincent descobre, aos poucos, que os alienígenas estão há muitos anos na Terra e assumiram posições estratégicas na economia e na política com o objetivo de dominar o planeta.
A série foi cancelada com apenas duas temporadas produzidas. Se tivesse sido renovada, a terceira temporada retrataria os alienígenas colocando em prática seu plano.
No início da série, Vincent era um homem ingênuo. Ao longo dos episódios, ele vai aprendendo a se defender, a identificar as conspirações alienígenas e a lidar com elas. Vincent também aprende a identificar em quem ele pode ou não confiar. Mulder seria Vincent nos dias de hoje. Um homem que ainda acredita, mas não luta mais contra o sistema. Ao contrário, Mulder se uniu a ele e o utiliza na sua busca da verdade. Para o governo, Mulder é um homem perigoso mas que, se mantido por perto, pode ser controlado e manipulado.
Inicialmente limitada a explorar ideias, Arquivo X começou a tomar forma em seu segundo ano, quando Scully é abduzida por alienígenas. Esta situação levou a série a trabalhar sua própria mitologia permitindo, inclusive, que Mulder definisse sua personalidade. Até então, ele era o retrato do caçador de alienígenas que tenta provar uma conspiração do governo para manter a verdade escondida. Quando Scully sai de cena (em função da gravidez da atriz), reproduzindo a mesma situação de Samantha, Mulder se vê obrigado a olhar para seu passado mergulhando em seus conflitos emocionais, o que fez surgir um personagem por inteiro.
O mesmo ocorre com Scully. Introduzida na série e no departamento como contraponto de Mulder, Scully tinha a função de observar e analisar o comportamento do colega, fazendo relatórios sobre seus casos, os quais poderiam colocar em dúvida as crenças do colega. A partir de sua abdução, a personagem começa a traçar um caminho de desconstrução, o qual a leva a questionar suas crenças na ciência, na religião e no governo.
Revista Rolling Stones fez ensaio sensual com os atores e teve revista disputada entre os fans Shippers
O sucesso de Arquivo X fez surgir a produção de outras séries que tentavam reproduzir sua fórmula, o que levou ao seu desgaste. A série não conseguiu ultrapassar a barreira dos cinco anos. Ela começa a perder fôlego a partir da sexta temporada. Ainda assim, ela resistiu até a nona, totalizando 202 episódios e duas versões para o cinema. Este ano, durante a Comic Con de San Diego, Carter, Duchovny e Anderson disseram ter interesse em voltar para um terceiro filme. Mas não há previsão de que algum dia ele seja produzido.
A influência de Arquivo X na TV é sentida até hoje. Além de ter sido a porta de entrada de roteiristas e produtores como Vince Gilligan (Breaking Bad), Frank Spotnitz (Strike Back, Hunted), Darin Morgan (Fringe) e John Shiban (Supernatural), ela também ajudou os executivos dos canais de televisão a entenderem um pouco mais sobre esse tipo de programa e o interesse que ele consegue gerar junto ao público alvo. Sempre que isto ocorre, produtores e roteiristas que cresceram assistindo a um determinado programa têm mais chances de colocar no ar algo que dará continuidade à proposta de uma determinada série.
Mix com os melhores momentos do último capítulo
Em meados de 1995, no período entre a segunda e terceira temporadas de Arquivo X, as legiões de fãs de ficção científica ao redor do mundo se faziam a mesma pergunta: os fãs da série poderiam chegar a exercer sobre a mídia a mesma influência que os stars warriors ou os trekkers? E essa peculiar pergunta partia de um crescente e assustador apelo que a tal série, do tal Chris Carter, vinha alcançando junto a esse mesmo público.
Parece impossível conceber tal mundo, onde a Internet não fosse preponderante para o estabelecimento de qualquer coisa, mas quando Arquivo X notou-se como obra criativa influente e bem sucedida, a rede era uma realidade de proporções limitadas, incapaz de ser responsável por qualquer transformação massificada. Se a série se tornou o que se tornou, isso só aconteceu devido a uma forma de transmissão de informação milenar e unificada, também subestimada pelos circuitos menos eruditas: o boca-a-boca.
Orgulho de ser Nerd
Imagine-se como um fã de ficção científica que passava muito tempo imerso em universos fantásticos que reuniam elementos atrativos desse gênero, trabalhando galáxias e tecnologias impensáveis e quase sempre imponderáveis… Imagine-se assim e, ao mesmo tempo, descobrindo Arquivo X, que na contramão de tudo isso, trazia o “possível” para o jogo do improvável e o fazia com lógica e seriedade. Era como o Santo Graal da existência nerd. Algo que se poderia defender diante de qualquer leigo, fazendo parecer que todas aquelas tramas, agora sim, despertavam para uma existência justa.
De espectador pra espectador, virando de fã pra fã. É mais do que óbvio que o apelo ambiguo da série era seu verdadeiro trunfo. Os espectadores regulares assistiam e se fascinavam com a condução do embasamento teórico perante o fantástico. Os espectadores esclarecidos assistiam para se orgulhar de terem confirmadas as suas crenças. Mais de uma vez durante os nove anos de série ouvi teorias de Mulder (David Duchovny) sendo usadas como fundamentais, ouvi os contra-argumentos de Scully (Gillian Anderson) sendo repassados como base verídica. A série foi se tornando uma espécie de enciclopédia involuntária, que tornava a discussão sobre vampiros ou alienígenas – antes ridicularizadas – em sérias e importantes para o desenvolvimento intelectual das pessoas.
Não demorou muito para que Arquivo X tivesse suas complexidades transformadas em estudo, em pesquisa, em prêmios, em cartilha… Todo fã de ficção científica é um apaixonado nato por razões óbvias. O universo do gênero é tão flexível e dependente da crença que seus admiradores precisam de uma imensa capacidade de defenderem suas perspectivas. Reconhecer a importância ou a inteligência por trás da criação de planetas e civilizações alienígenas nunca foi fácil para a mídia ou para a crítica especializada. Se hoje em dia isso se alcança com mais facilidade, provavelmente Arquivo X tem algo a ver com isso.
Com isso em mente, Chris Carter e sua equipe conduziram a série poupando o público do fantástico visível e trabalhando apenas com a sugestão. Quando o público cético via Scully reagindo mal ao momento em que Mulder dizia a palavra “lobisomem”, se identificava com ela. Mas quando a condução do episódio colocava-a diante de evidências científicas ou mitológicas que sustentavam tal hipótese, esse mesmo público era seduzido pela possibilidade daquela tão irresistível “verdade”. Dentro de todos nós sempre existiu, em alguma instância, um infante louco para acreditar em vampiros. Arquivo X tinha muitos motivos para ser tudo que acabou sendo, tinha tudo para conquistar mais e mais.
Created with flickr slideshow.
Excers
Falar sobre a minha experiência como excer talvez ajude a entender a dimensão da série. Conheci Arquivo X quando ela estava na sua quarta temporada. Morava na Baixada Fluminense, no interior do Rio de Janeiro, no interior do interior da cidade e do bairro em questão. O primeiro episódio que assisti foi exibido na Record, numa postura do canal que precisa ser louvada até hoje. Arquivo X chegou até a televisão brasileira da mesma forma discreta com a qual chegou na televisão estadunidense. Não demorou muito e a audiência da série começou a chamar a atenção e a incomodar a concorrência.
Os episódios eram exibidos aqui com um atraso considerável. Ainda que a Record tenha exibido a série inteira (entre altos e baixos), as temporadas demoravam muito para chegar. Eu, lá no meu interior, para conseguir ver os episódios anteriores aos da quarta temporada, precisava de medidas drásticas. Ainda que já existisse a Internet, ela não era popular e passava batida pelo meu universo campestre. Porém, existiam as publicações, e no que diz respeito a Arquivo X, elas eram vastas e valiosíssimas. A Starlog e a Sci-Fi News foram algumas das que me ajudaram muito a ficar por dentro de tudo, de alguma maneira. O apelo de Arquivo X crescia tanto que a Sci-Fi News, por exemplo, não deixava uma só edição sair sem alguma chamada de capa dedicada à série.
Nesse final da década de 90, enviei uma cartinha para uma dessas publicações, pedindo para que outros fãs me contactassem para me ajudar com o que tinha perdido. Fiz isso sem nenhuma expectativa e, duas semanas depois que o endereço foi publicado, as cartas começaram a chegar de todas as partes do país. Eram em média 50 cartas diferentes por semana, e continuei recebendo de remetentes novos durante meses, num sinal claro de que a revista continuava sendo adquirida ou repassada de várias formas. Várias dessas pessoas me ajudaram muito com a série. Eu enviava a elas fitas de vídeo virgens e elas gravavam os episódios da Fox para depois me mandar as fitas de volta. Assim consegui assistir tudo que estava atrasado e tudo que veio depois disso.
As trocas de informações eram constantes e vinham das mais diversas maneiras. Havia todo tipo de associação a fã-clubes e de busca por itens da série. Convenções, encontros, maratonas, vigilias… Minha realidade para discutir teorias não era a Internet (os fóruns já eram bem estabelecidos nessa época), mas páginas e páginas de cartas entravam e saíam da minha casa com discussões a respeito. Logo eu mesmo comecei a gravar fitas para outros que tinham estado na mesma situação que eu, formando uma rede extensa de ligações sociais e emocionais. E o mais importante: nada disso passou incólume pela mídia, que pela primeira vez parou de avaliar criticamente esses movimentos, passando a abraçá-los como manifestações do que seria o verdadeiro futuro da fórmula seriada para a televisão. Arquivo X era uma obra de vanguarda – e seus fãs também eram vanguardistas.
Um segundo filme só foi possível por conta desses fãs e se houver um terceiro, esse também será o maior dos motivos. A Fox sempre entendeu a força da série em números e capital, sendo ela a primeira a lançar edições especiais das temporadas em DVD, acreditando fortemente no interesse do fã por boxes tão luxuosos e caros. Cada um desses aspectos é cultivado até hoje sob forte atenção. O fã de Arquivo X pode sim reconhecer todos os problemas que envolveram a série, mas nunca abandonará a máxima pouco elegante, mas inocentemente honesta, que permeou toda a história dele e tudo que ele representa. O fã de Arquivo jamais deixará de ser um fã. Forever Excer.
Os filmes
No final da década de 90, ao mesmo tempo em que a televisão descobria a própria força através do fenômeno Arquivo X, os estúdios ainda eram receosos de levar essas mitologias para o cinema. É claro que a TV sempre teve sua força mas, até então, era vista como um subproduto, sem o lastro de respeitabilidade que o cinema ganhou ao longo do século 20.
Outro problema envolvendo a questão era a limitação do acesso ao universo seriado, que seria prejudicial ao espectador leigo, tornando obras como Arquivo X e sua extensa rede de segredos completamente inviáveis para o cinema. Ainda assim, o “inviável” é bastante relativo quando o assunto é dinheiro…
A Fox era só sorrisos pela série e Chris Carter era só angústia nos bastidores. Cobranças vinham de toda parte, principalmente de David Duchovny, que exigia a mudança das gravações de Vancouver para Los Angeles e tentava exercer algum controle sobre o personagem constantemente. Havia uma ebulição dentro do set e outra no mundo lá fora: Arquivo X era uma unanimidade de crítica e público e só mantê-la no ar já não era suficiente, nem para os fãs, nem para os executivos. Assim, a Fox deu o sinal verde a Arquivo X: O Filme (The X Files: Fight the Future), o aguardadíssimo primeiro longa-metragem baseado no universo da série de TV.
Mulder e Scully, heróis em escala global
Para que as qualidades e os problemas de Arquivo X: O Filme sejam avaliadas corretamente, é preciso pensar primeiro no ponto mitológico que a série estava vivendo no final da quarta temporada, quando o filme de 1998 passou a ser uma realidade. Carter vinha trabalhando com uma noção ainda vaga de colonização, que se desenvolvia muito mais pelo aspecto das experiências de clonagem e hibridização humano/alienígena do que por disseminação viral. As abelhas enfim começaram a aparecer e eram o único indício de uma nova abordagem para os planos de dominação por contágio.
Até ali a mitologia estava mais focada em desenvolver o câncer de Scully (Gillian Anderson) para, através dele, expor pedaços da mitologia perante os agentes. Assim que ficou decidido que o filme seria feito no intervalo entre a quarta e quinta temporada (para ser exibido no intervalo entre a quinta e a sexta), Carter se reuniu com sua equipe e tomou a decisão de resolver a crise da doença de Scully e partir para novas perspectivas acerca da trama mitológica.
A quinta temporada começou com Scully se curando, Mulder sendo jogado na dura realidade de que talvez estivesse acreditando numa mentira e com as experiências de mistura de DNA sendo deixadas um pouco de lado. Carter sabia que havia chegado a um ponto onde as cobranças por respostas começariam a superar o deleite com as perguntas e uniu essa necessidade ao que acabou se tornando o filme.
O criador incluiu os rebeldes-sem-face, que tapavam orifícios para impedir a contaminação pelo óleo negro, num primeiro movimento de que esse seria um ponto decisivo dali por diante. Cassandra Spender (Veronica Cartwright) e seu filho (Chris Owens) também apareceram ali como sinal de que o estreitamento das relações pessoais com a família de Mulder era o outro sinal de que o terreno se preparava para resoluções.
A Fox cedeu um bom orçamento e pediu uma trama que pudesse ser vista por qualquer tipo de espectador. Ao mesmo tempo, Carter sabia que precisava lidar com a mitologia, ou os fãs se irritariam. Resolver tudo, entretanto, era inviável. O beco estava mesmo sem saída: precisar falar de mitologia sem poder falar de mitologia. A saída mais viável? Mexer no pouco do que se poderia servir. E foi aí que começaram os enganos.
Havia três pontos sagrados para os fãs da série:
Mulder e Scully são losers do sistema vigente, engolidos por coisas muito maiores que eles. A série parte do maior para o menor e não o contrário;
Boa parte do apelo da série se dava pela esperteza narrativa: mostrar o mínimo possível. Além disso, alienígenas e suas variações (como o óleo negro) eram livres de maniqueísmos;
Querer Mulder e Scully juntos era muito mais legal do que ver a série se tornar um tratado de amor entre eles. A expectativa era melhor que a consumação e a série era a melhor em lidar com isso.
A quinta temporada terminou com os escritórios do porão sendo destruídos e os Arquivos X, novamente, fechados. Mulder e Scully começaram a lidar com questões administrativas e acabaram indo parar, sem saber, numa imensa queima de arquivo que derruba um prédio inteiro para esconder evidências misteriosas.
Do ponto de vista do apelo ao fã, a abertura do filme é fantástica. Ver o óleo negro virando protagonista era algo feito para os espectadores da série. No entanto, a mesma alegria se esvai antes mesmo de Mulder e Scully darem as caras no filme, e o item 2 dessa lista sacra sofre a heresia derradeira. O óleo negro ganha características novas, de gestação, e passa de entidade alienígena a vírus fertilizador. Em menos de cinco segundos a história sofre uma reviravolta de proporções perigosas, que geram uma nova série de perguntas que não deveriam surgir nesse momento do jogo.
A mácula definitiva vem em seguida, com o vírus engravidando seus hospedeiros e gerando uma criatura alienígena mortal, cheia de instintos assassinos vazios, sem racionalidade e que não combinava com a natureza da série. Carter foi acusado de ter vilanizado os aliens para atrair o público leigo, mas acabou causando um problema pra si, porque não podia explicar como o óleo negro nunca tinha engravidado ninguém antes (e ainda precisou explicar as criaturas assassinas com uma “troca de pele” providencial na temporada seguinte).
Claro que com alienígenas matando gente, a coisa toda – que antes partia do maior para o menor – se inverte, e Mulder e Scully precisam evitar danos à raça humana numa proporção global. O item 1 dos nossos mandamentos sagrados sofre o ataque vil: os parceiros se tornam superagentes no cinema. Lá se vai Mulder atrás de sua parceira, no meio do gelo da Antártica, com coordenadas impossíveis, encontrá-la no meio de centenas de outros hospedeiros, acabando com todo o sistema da nave, e voltando com apenas uma abelha de prova. Na época, muitas brincadeiras foram feitas com a impossibilidade dos dois voltarem sozinhos de lá, e Carter até abrigou isso no episódio “Alone”, da oitava temporada.
Além da megalomania do roteiro, o filme cometeu erros bobos, como trazer membros do Sindicato que nunca tínhamos visto antes. Mas, ao mesmo tempo, nos presenteou com momentos bacanas, como Mulder abraçando Scully na neve, vendo a nave subir, e fascinado com a chance de presenciar tal coisa. O item 3 da lista acima, efetivamente, foi o único que saiu ileso desse filme. O quase-beijo interrompido pela abelha foi um momento épico do longa e que respeitou devidamente as nossas expectativas de sempre querer mais expectativas.
No final das contas, olhando pra trás, fica claro que não foram tomadas boas decisões e que a empolgação dos fãs era justificada pela febre que nos assolava. O futuro da série começou a ser seriamente afetado a partir dali e essa experiência no cinema acabou jogando as esperanças de novos projetos numa espécie de limbo. Isso até 2008, quando Arquivo X – Eu Quero Acreditar (The X Files: I Want To Believe) estreou e ajudou a piorar essa sensação de deslocamento e inadequação.
Acreditar no quê?
A cobrança por uma nova aventura dos agentes Mulder e Scully sempre houve. Em parte, como uma resposta às constantes declarações de produção e elenco, de que voltariam para o cinema, se fosse possível. E em parte, também, como um pedido desesperado para correções que apagassem o terrível último episódio da série. Um segundo filme era significado de redenção, mas… A redenção nunca veio.
O orçamento de Arquivo X – Eu Quero Acreditar era metade do custo do filme anterior. O anúncio de que a continuação aconteceria trouxe logo a grande pergunta: “Teremos mitologia?”. Carter se apressou em responder que não. Provavelmente achou que a mitologia precisaria de muito para ser consertada. De fato, voltar aos supersoldados, à proximidade da data da colonização e ao destino de William poderia exigir da produção uma nova história em escala global. A verdade é que o dinheiro era pouco e a Fox não achava que falar de mitologia depois de tanto tempo do final da série seria benéfico para o filme.
Mais uma decisão questionável pra a coleção, portanto: zero mitologia. O interesse dos fãs se manteria, é claro, por conta da perspectiva de ver os agentes sob aquela nova realidade: fugitivos, sobrevivendo através do trabalho de Scully, deprimidos por terem desistido do filho, e funcionando, enfim, verdadeiramente, como um casal (ainda que numa ótima cena, Scully se recuse a se referir a Mulder como seu marido). Esses pequenos detalhes levariam qualquer fã da série para o cinema, mas num novo mundo, repleto de roteiros hiperfuncionais, não havia mais espaço para os truques de sonegar informações de Carter.
Arquivo X – Eu Quero Acreditar segue tocando e entediando mesmo o fã mais xiita. Se numa cena em que Scully cobra que Mulder não volte mais “para a escuridão” o filme cresce, nas cenas em que os enigmas do padre pedófilo aparecem em versículos e lágrimas de sangue o filme desaba. Carter é inteligente na forma como conduz a trama, revelando quase nada da ligação psíquica entre vítima e agressor, mas em 2008 o cinema de suspense e terror já vivia basicamente do choque, das reviravoltas, do final surpresa. Tudo em Arquivo X – Eu Quero Acreditar é quase singelo e faz o horror do segredo final parecer menor.
Isso deveria ser bom – afinal, Arquivo X não precisaria imitar outros filmes para se fazer notar – mas não funciona aqui. A trama do longa é excessivamente científica (o que pelo menos torna a participação de Scully mais coerente na trama) e o recurso dos fenômenos paranormais parecem encomendados para tornar a presença de Mulder justificada.
Ainda assim, tecnicamente falando, o filme é muito superior ao anterior. A história é limpa, segue um padrão e uma paleta visual constante, mas não tem nenhuma razão de ser. Mulder e Scully não são trazidos de volta por nenhuma razão consistente com o universo de onde vieram. Arquivo X – Eu Quero Acreditar é correto, mas não acrescenta nada aos personagens e parece um episódio regular de meio de temporada, focado em ciências e psicologias já amplamente discutidas nos nove anos de programa.
O resultado foi um filme insípido, que não comove nem chateia, e que passou pelo mundo sem nenhuma relevância comercial. A trilha sonora do filme anterior, por exemplo, é sucesso de vendas até hoje. Já Arquivo X – Eu Quero Acreditar não conseguiu nem mesmo um lançamento digno para seu DVD. Se o filme não arranhou a trajetória dos personagens (como fez o antecessor), acabou servindo, entretanto, para insinuar a perda do apelo da marca, o que seria, enfim, nosso pior pesadelo. Com Arquivo X considerado obsoleto, um terceiro filme se tornaria praticamente impossível.
Carter já disse que voltaria para a mitologia caso o terceiro filme acontecesse. Mas é tarde demais? Um terceiro longa talvez redimisse a série de todas as suas agonizantes tentativas de chegar a um final coerente com o que ela foi. Um final que não fosse tudo que esperávamos, mas que fosse ao menos próximo do que deveria. Ainda há quem acredite, mas Arquivo X lutou contra o futuro e perdeu. Sigamos festejando tudo o que a série foi no passado – porque o que ela foi nenhuma outra conseguiu ser.
Reprodução Omelete / Henrique Haddefinir
A 10ª e 11ª temporada (update)
A volta de The X-Files, com 6 episódios que foram ao ar 14 anos após a última temporada, foi umas das séries com maior audiência da Fox na Mid-Season 2016. Desde que o reboot aconteceu, os executivos da emissora estão fazendo de tudo para garantir novos episódios.
O presidente da Fox Entertainment, David Madden, no evento da Associação dos Críticos de TV, comentou sobre as conversas que tem tido com os protagonistas Gillian Anderson (Scully) e David Duchovny (Mulder) e também com o criador da série, Chris Carter:
Nós amaríamos fazer outras temporadas. Temos tido conversas significantes com as três pessoas principais do seriado. Temos trabalhado duro, e gostaríamos de ter uma nova temporada em breve
A chefona da Fox TV, Dana Walden, admitiu que o canal gostaria de ter feito mais episódios para a volta da série, mas que houveram certas limitações:
Nós gostaríamos de ter feito mais episódios, mas houveram limitações. Gillian mora na Grã-Bretanha, David em Nova York e Los Angeles. A série é gravada em Vancouver. Então precisamos encontrar uma data para que eles possam arrumar tempo para ficar no Canadá
Apesar do desejo, Walden acredita que não será possível fazer uma temporada típica de 22 episódios:
Estamos conversando sobre fazer mais capítulos. Não vejo uma temporada completa, mas ficaria feliz em ter 10 ou 8 episódios
Os executivos da Fox também foram perguntados sobre as críticas mistas que a 10ª temporada recebeu:
Eu achei a temporada muito boa. Os episódios representam Chris e a visão de seu time, e nós confiamos neles. A série ficou fora do ar por muito tempo. Foi introduzida para um novo público, e os escritores tiveram o desafio de explicar a mitologia. De agora pra frente, essa obrigação não será mais necessária.
DVD e Blu-Ray
Após criar grandes expectativas para o seu retorno desde o anúncio e ganhar destaque na televisão por conta da sua exibição, agora a 10ª temporada da série Arquivo X chegou ao mercado home vídeo em DVD e Blu-ray.
Além de apresentar os episódios inéditos com os retornos de David Duchovny como Fox Mulder e Gillian Anderson como Dana Scully, o material da nova temporada ainda contém cenas excluídas, erros de gravação e entrevistas inéditas com atores e equipe técnica contando como foi fazer parte dessa obra que mudou para sempre os padrões de produção para televisão na década de 1990.
Composta por 6 episódios, a 10ª temporada de Arquivo X já está disponível em DVD (R$79,90) e Blu-Ray (R$99,90) desde o dia 04 de agosto.